FORA DA CARIDADE E DA EDUCAÇÃO…

Com a aproximação das eleições, começa a haver um debate em que política e religião serão colocadas no mesmo saco. Por um lado, há candidatos interessados nisso mesmo, em que usam títulos religiosos e a sombra das suas instituições para ganhar votos (e poder). Há outros que até pouco tempo eram ateus e agora andam visitando Templos. E há outros que preferem deixar religião e política separados.

Como um blog espiritualista pode tratar desse assunto espinhoso sem entrar na esfera política?

Pois bem, encontrei a solução enquanto lia sobre Allan Kardec e a perseguição que o Espiritismo sofreu na Europa (especialmente na França, seu berço). Kardec foi atacado sem cessar por jornalistas, padres, cientistas e céticos que, numa época em que a França aspirava cada vez mais se libertar da Nobreza e do Clero (A instauração da “Terceira República” e o fim da Monarquia viria dois anos após sua morte, em 1871), não viam com bons olhos a instauração de uma nova religião. Como não podiam atacar os espíritas por suas ações (não havia dízimo, Kardec era muito reticente a aceitar doações e os ensinamentos visavam a caridade e o bem) atacavam os embusteiros que faziam shows de mágica como se fossem comunicações ou ações de espíritos, obviamente em troca de dinheiro ou “doações”. E, embora Kardec também condenasse esse tipo de coisa reiteradas vezes, sempre a imprensa associava esses charlatões ao espiritismo. Uma mentira, repetida tantas vezes, acaba se tornando verdade. E, com o passar das décadas, o Espiritismo acabou ficando associado a essa prática, ignorando-se assim todo o lado moral e filosófico dessa doutrina.

“Um demônio que procurasse destruir o reino do vício para estabelecer o da virtude seria um demônio esquisito, porque se destruiria a si próprio.”

Denis-Luc Frayssinous

No nosso “mundo Iluminista” de hoje se dá o mesmo. Pessoas são desqualificadas apenas por se dizerem religiosas. Não por alguma falha de caráter pessoal, mas sim pela má fama projetada por pessoas sem escrúpulos que usam a religião para manipular, roubar e extorquir pessoas, isso desde que o mundo é mundo. A ignorância de muitos adeptos também não ajuda. Mas é preciso julgar as pessoas pelo que elas são individualmente, e não por um rótulo. Luta-se tanto contra o preconceito nas mais diversas esferas (raça, opção sexual, gênero), mas quando é contra um religioso parece que está liberado. E não é porque há líderes religiosos que alimentam o preconceito que nós devamos retribuir na mesma moeda.

“Olho por olho, e o mundo acabará cego.”

Mahatma Gandhi

Não se pode, entretanto, passar a mão na cabeça de quem corrompe as religiões e brinca com a fé das pessoas. Não é de hoje que estamos assistindo a decadência das religiões. Em 1861, Kardec recebeu a seguinte comunicação do escritor católico François Fénelon:

“A corrupção no seio das religiões é o sintoma de sua decadência, como é o da decadência dos povos e dos regimes políticos, porque ela é o indício de uma falta de fé verdadeira; os homens corrompidos arrastam a Humanidade para um despenhadeiro funesto, de onde ela não pode sair senão por uma crise violenta. Dá-se o mesmo com as religiões que substituem o culto da Divindade pelo culto do dinheiro e das honras, e que se mostram mais ávidas dos bens materiais da Terra do que dos bens espirituais do Céu.”

François Fénelon

Cabe perfeitamente como uma descrição da prática de certas denominações religiosas… mas será que todos os seus integrantes podem ser rotulados de materialistas que barganham com Deus?

O livro Kardec nos mostra que, em maio de 1868, Kardec recebeu a comunicação de um visitante de batina: o cura da cidade argelina de Sétif, Bizet, morto um mês antes:

O recém-chegado estava pronto a dar seu testemunho do além pelas mãos de um dos médiuns presentes. À frente de sua paróquia, Bizet sempre evitara atacar o espiritismo, mesmo sob ordens do bispo de Argel, monsenhor Pavie, que definia a doutrina como “esta nova vergonha da Argélia”. Em vez de combater as ideias e os valores difundidos por Kardec, e adotados também por muitos de seus fiéis, Bizet se dedicava, nas horas vagas, a distribuir alimentos e cobertores a vítimas da fome e do frio em sua região.
Kardec foi direto ao assunto:
— Eras espírita em vida?
— Se entendeis por esta palavra aceitar todas as crenças que vossa doutrina preconiza, não.
Mas o cura Bizet se recusava a alimentar a intolerância e encarava com pragmatismo a nova religião:
— É preferível ter uma crença que leva à caridade e à prática do bem, do que não a ter absolutamente.

Marcel Souto Maior; Kardec

Eu diria mais: aquele que não tem crença alguma e que pratica a caridade o bem é ainda maior, porque nada espera, nem em vida, nem em morte. Por isso tenho grande respeito e admiração por aqueles que, sem crença alguma, conseguem se manter sãos nesse mundo louco, com base na educação, no respeito ao próximo e numa firmeza moral interna. Não deveríamos exaltar religiões. Não deveríamos exaltar crenças ou o nome de tal e tal divindade. Devíamos sim exaltar o CARÁTER, a bondade e a correição de atitudes, independente de onde venha. Não foi essa a lição que Jesus e seus doze apóstolos controversos nos deixaram? Não foi isso que Paulo de Tarso sintetizou tão bem?

FORA DA CARIDADE E DA EDUCAÇÃO...
Fora da caridade não há salvação (versão texto)

bandeira da espanha Ler em espanhol (por Teresa)

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Subsumer
Subsumer
1 setembro de 2014 8:25 pm

É a dialética, meu caro, a dialética

abraço

Anônimo
Anônimo
14 setembro de 2014 1:26 am

Se todos fossem às escolas, estaria encaminhada naturalmente a condição de fazer as pessoas se virarem por conta, de forma digna. Não tem ato maior de caridade do que exigir ou propiciar que todo mundo vá a uma escola de qualidade na obriga e no maior tempo de duração possível, pois é inegável a relação entre tempo de formação e qualidade de vida, e não é só uma questão financeira, mas o fato de se ter aprendido a fazer funcionar o cérebro o suficiente para não ser um analfabeto funcional. Boa e longa formação educacional dão as melhores condições a… Read more »

Subsumer
Subsumer
28 agosto de 2014 12:47 pm

O humanismo do Acid e o Teocentrismo do Neutrino se harmonizam em algum ponto.

Creio que a suprassunção dessa dialética se dá assim: de fato há Deus, a completude da perfeição, e de fato ele está dentro de nós (somos seus “filhos”, ou melhor, somos o próprio Deus em experiência relativa). O humanismo é teocentrismo quanto mais se reconheça a perfeição (gradativa)nas criaturas, isto é, o absoluto no relativo. E o teocentrismo é humanismo na mesma medida.

Helvio
Helvio
26 agosto de 2014 5:41 pm

Mais um texto excelente. Obrigado por partilhar um pouco da luz que consegues enxergar.

outro neutrino
outro neutrino
25 agosto de 2014 11:43 am

“Todos os exemplos de caridade de Jesus foram baseados no caráter, mesmo de gente que tinha outras visões religiosas ou detestadas socialmente” É evidente que um sujeito com desvio de caráter está mais propenso a ser objeto da caridade, mas a base, o propósito dos gestos caritativos de Jesus foi, sim, o chamado à conversão religiosa: “Não vim chamar à conversão os justos, mas sim os pecadores”, “vá e não peques mais”, “ninguém vai ao Pai senão por mim” etc. “Obviamente no contexto em que estava inserido era necessário passar o cunho religioso…” Um dos doutores da lei perguntou a… Read more »

Dan
Dan
25 agosto de 2014 11:05 am

Já que tocamos um pouco em política, eleições atuais, e toda essa coisa de assumir um status, tem esse vídeo aqui que achei muito engraçado:

http://youtu.be/8ogVt56Clw8

Leandro
Leandro
25 agosto de 2014 10:42 am

O problema é que hoje, a maioria das religiões é usada no Brasil como fonte de poder econômico e político. Muitas das pessoas que se dizem religiosas não o são realmente e apenas utilizam e religião como trampolim. Acho perigoso dizer que todos os que se dizem religiosos são materialistas em barganha com Deus, mas posso me arriscar a dizer que aqueles que utilizam a religião para se promover e promover suas próprias práticas caem neste grupo, infelizmente

Cadu
Cadu
25 agosto de 2014 10:21 am

Lindo texto Acid! Quando penso em Jesus e outros nomes importantes espirituais não consigo deixar de imaginar que eles vieram trazer e exemplificar uma forma de pensamento e conduta, como mestres que já alcançaram certos conhecimentos e que desejam repartir com todos. Jamais vieram trazer “religiões”, estas instituições humanas que servem para todos tipo de propósito, alguns bons e outros muito ruins. Estes mestres foram simples e diretos e apenas convidavam todos a experimentar esta forma diferente de enxergar as coisas. Quando leio sobre Kardec vejo esta noção em todas as suas páginas. Ele nunca teve a intenção de que… Read more »

Anônimo
Anônimo
25 agosto de 2014 7:34 am

Alivio… Voltaram os comentários inteligentes. Espero que isso afaste os Bs’ters gratuitos.

Fernando Silva
Fernando Silva
25 agosto de 2014 5:31 am

Esquecendo um pouco de religião, deuses ou doutrinas. Se Deus, reencarnação, entre outras coisa fossem apenas contos de fadas e descobríssemos que não passamos de crianças esperançosas em preencher nossos sonhos e desejos, o que restaria? Restaria a humanidade, aceitar que somos imperfeitos e falhos. Quando aceitarmos nossa natureza humana perceberiamos ser fracos, e apenas juntos, nos tornamos fortes. Nos juntaríamos para construir um mundo melhor. Queria colocar um texto que escrevi a um tempo, que eu acho relevante

um neutrino
um neutrino
25 agosto de 2014 12:04 am

“Não deveríamos exaltar crenças ou o nome de tal e tal divindade. Devíamos sim exaltar o CARÁTER, a bondade, a correição de atitudes, independente de onde venha.” É exatamente esse tipo de pensamento que gera consequências como estas: “os homens corrompidos arrastam a Humanidade para um despenhadeiro funesto, de onde ela não pode sair senão por uma crise violenta. Dá-se o mesmo com as religiões que substituem o culto da Divindade pelo culto do dinheiro e das honras, e que se mostram mais ávidas dos bens materiais da Terra do que dos bens espirituais do Céu.” O início dessa corrupção… Read more »

um neutrino
um neutrino
1 setembro de 2014 12:07 am

Caímos novamente naquela velha história, caríssimo Subsumer. 🙂 Não “somos o próprio Deus”, pois é contraditório atribuir perfeição integral ao Ser e afirmar que parte dele seja imperfeita. Perfeição implica ato puro, e consequentemente o que é contingente, e mesmo o conjunto de tudo o que é contingente, não pode ser Deus.
Abraço

bob
bob
14 setembro de 2014 3:46 pm

É isso aí! Tb concordo que é a educação a grande ‘mola mestra’ das sociedades.

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