Este é mais um maravilhoso conto de fadas do diretor mexicano Guillermo Del Toro, voltando ao mundo fantástico que ele domina. O filme tem uma pegada de Amélie Poulain na primeira metade, enquanto apresenta a personagem principal com uma bela fotografia que evoca com glamour a América do Norte dos anos 50. Mas este é um filme do diretor de Labirinto do Fauno, então é de se esperar um mergulho no pior da alma humana, e dessa vez nos deparamos com o tema PRECONCEITO, apresentado em todos os seus níveis.

O filme se passa em 62, época dos mísseis russos em Cuba, onde chegamos o mais perto possível de uma guerra declarada entre Rússia e EUA. Elisa é uma zeladora muda que trabalha em um laboratório onde uma criatura anfíbia está sendo mantida em cativeiro. Elisa e a criatura se apaixonam, e durante o filme aprendemos que o verdadeiro monstro é o ser humano.
Esse é um filme dirigido com o coração por Del Toro, e embora não seja sua obra-prima (Labirinto do Fauno ainda é melhor) merece o reconhecimento que está tendo nas premiações afora.
SPOILERS ABAIXO
Qual a forma da água? A água se molda, se adapta. Sim, mas as qual a forma que o diretor quis que nós víssemos na tela? As gotas de água no vidro do ônibus ganham um certo destaque em dado momento, e uma certa forma está presente em todo o filme de forma nada subliminar: o ovo.
O ovo na simbologia significa Vida, seja ela na sua origem, gestação, ou nascimento/renascimento. O ovo está na alimentação diária de Elisa, no reloginho que ela coloca no banheiro pra se masturbar, no ovo que usa pra cativar e nutrir o seu amor e nas inúmeras formas circulares ou abauladas dos cenários (obra da belíssima direção de arte do filme). Ovo é a primeira palavra que ela ensina à criatura. É do ovo que surgem os anfíbios, é o ovo metafórico que gestou a “Elisa aquática” que estava por vir.
É preciso encarar o filme o tempo todo como uma metáfora da nossa vida, afinal esse é o sentido dos contos de fadas. Se o fato de uma pessoa se apaixonar tão rapidamente por aquela criatura é um pouco difícil de engolir, o filme até nos dá uma razão baseada no fantástico (seria ela uma anfíbia o tempo todo? ela foi um bebê achado nas águas, com marcas como guelras no pescoço, e o fato dela controlar as gotas d’água no vidro do ônibus pode não ter sido uma licença poética) mas o importante mesmo é a lição que nos deixa: Que mal há em amar (e, mais importante, DEIXAR AMAR) o diferente? Temos medo do diferente, e esse medo facilmente vira desprezo, ódio, indiferença, abuso, e isso é retratado em vários níveis durante o filme:
– O medo dos Russos, que no início da corrida espacial era desprezo com um cachorro indo pro espaço e se tornou paranóia e terror rapidamente;
– O medo dos negros, com as revoltas mostradas na TV e a discriminação gratuita contra um casal negro na lanchonete;
– Medo dos homossexuais, que o fazem serem discriminados e segregados;
– Medo do diferente, deixado claro com a aparência da criatura e o fato de que só batiam nela, não tentavam sequer se comunicar.
– Medo das mulheres, com duas referências a Dalila, que tirou a força de Sansão. Medo travestido de desprezo pelo feminino, que é uma força que é subestimada e explorada, seja em casa (pelo próprio marido) ou no trabalho (pelo chefe), limitadas a um trabalho humilhante de limpeza onde as pessoas nem se importam em jogar o lixo no lixo ou urinar dentro do vaso. E mesmo quando são capazes de realizar a fuga de uma instalação militar os outros calculam que foi “uma força de 10 homens altamente treinados”.
O monstro do filme, como em “Labirinto do Fauno“, é o homem. E nesse caso o homem branco, hétero, com filhos, que anda de Cadillac. Ou seja, um estereótipo do norte-americano médio. O diálogo dele com o general é ótimo, no sentido de mostrar que esse american way of life era só fachada pra exportação de uma moral que eles não têm em casa.
Del Shannon como o vilão Strickland está perfeito, ameaçador em cada fotograma (a forma como ele é enquadrado, iluminado só mostra a diferença que um bom diretor faz), a história do cientista espião russo é um arco fascinante e bem construído e a Elisa de Sally Hawkins consegue emocionar e segurar o filme mesmo não sendo o tipo de atriz estereotipada de Hollywood que atrai olhares, ou seja, ao contrário de Titanic, onde temos um casal jovem e bonito pra fazer a platéia sonhar, Del Toro nos traz uma mulher de meia idade que podia ser sua vizinha e uma criatura aquática que definitiva e propositalmente não é atraente ao olhar (e poderia ser, basta ver Abe Sapiens – de Hellboy – outra criatura anfíbia do mesmo Del Toro, aliás, já tem gente especulando que eles são os pais do Abe) e ainda assim nós torcemos e nos emocionamos por eles, e essa é a grande lição do filme: EMPATIA pelo diferente.
Incapaz de perceber a sua forma, eu encontro você ao meu redor. Sua presença enche meus olhos com o seu amor. Isso torna o meu coração modesto, pois você está em todos os lugares.
https://www.pensador.com/autor/a_forma_da_agua/
…É… Isso é realmente MUITO CHATO!
Alguns (minorias, invariavelmente!) exigem respeito, mas não colaboram para que a MAIORIA respeite…
Simplesmente QUEREM, IMPÕE essa demanda POR RESPEITO, enquanto afrontam radicalmente, desafiando mesmo, os valores e tradições consagradas…
As pessoas têm uma inércia. Mudanças culturais levam tempo.
Eu me consolo neste artigo aqui:
http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2016/02/tomada_de_consc.html
Já li ele várias vezes, e continuo me referenciando nele… E acredito que seja bem assim mesmo, que num futuro (não muito distante, espero!) tenhamos um “meio-termo”! 🙂
Concordo plenamente que devemos RESPEITARMO-NOS UNS AOS OUTROS.
Minha queixa neste cenário todo é a exigência disto estar unilateral.
Não dão o direito de pessoas se sentirem desrespeitadas quando a rede Globo ensina Ideologia de Gênero para pré-adolescentes na novela malhação, ou quando tentam enfiar por Lei esta mesma matéria nas escolas.
…Ao contrário, meu camarada! Em 1999, no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre, tive a oportunidade de assistir a uma palestra do José Saramago… Me lembro como se fosse hoje: “…Jesus Cristo disse que devíamos amarmo-nos uns aos outros… Eu digo que ninguém tem que amar ninguém! …O que DEVEMOS é RESPEITARMO-NOS UNS AOS OUTROS!” (e ele disse bem assim, com pausas, mas SEM VÍRGULAS!) 🙂 José Saramago… Milhares de colares poderiam ser feitos com suas “infinitas” (e porque não, preciosas também!) pérolas! 🙂 … É bem isso mesmo… RESPEITO! Já é um bom começo! A meta é… Read more »
Filme e artigo claramente militantes. Ninguém é obrigado a respeitar ninguém e aparelho excretor não reproduz, aceitem que dói menos.
‘A forma da água’ é grande vencedor do Oscar 2018.
https://g1.globo.com/pop-arte/cinema/oscar/2018/noticia/a-forma-da-agua-e-grande-vencedor-do-oscar-2018-em-noite-dividida-e-com-feitos-ineditos.ghtml
Um filme feito pra nós, pobres, pretos, gays, mulheres, pagãos, renegados, baixo clero, sonhadores, esquisitos (poderia citar nerds, mas nesta década os valores se inverteram). Os “monstros” da sociedade, que não se curvam à massa.
Um filme para quem ainda acredita e faz por merecer que o mundo seja um lugar mais justo e bonito.
Como assim? Esquerdista de “esquerda” tipo dark side?
Esse blog já foi bom mas agora está muito esquerdista. Deve estar sendo “incentivado” por algum partido.
que tempos vivemos, falamos em humanismo e respeito ao diferente, chamam-nos de esquerdistas…. ok, não é ofensa, obrigado.
Esse aqui também é muito bom:
http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2013/08/quem_quer_respe.html