SOLARIS

No jornal O Globo de 31/01, Arnaldo Bloch fez uma leitura interessante do filme Solaris (do russo Andrei Tarkovsky), traçando um paralelo com nossas vidas. Só que a leitura vai muito mais longe, beeeem mais longe (talvez até não intencionalmente), e quem leu o post anterior sobre o Esquecimento de vidas passadas vai perceber:

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Solaris é a história de um planeta cujo oceano materializa memória e imaginação humanas, criando seres confusos que buscam um acerto de contas. Por outro lado, os habitantes de nossas memórias estão realmente vivos na esfera da consciência, como vivas estão as criaturas da imaginação. Os habitantes dessa esfera (bem como nossos amigos, parentes e inimigos), fazem-nos visitas noturnas ou ao amanhecer, dialogam conosco, buscam respostas. Como em Solaris, tratamos mal a nossa “visita indesejada”, que pensávamos morta ou distante de nossos pensamentos imediatos. Entramos em pânico ao vê-la novamente tão viva e tão palpável, e, num arroubo, mandamo-la de volta ao espaço, confinada a uma pequena sonda enferrujada, para os cafundós do inconsciente.

Mas ela voltará, desta vez ainda mais sôfrega, confusa e determinada em sua busca de verdades ou, eventualmente, de vingança. Então, trataremos melhor a visita, procuraremos negociar com ela, entender os seus motivos e a sua natureza, não repetir os mesmos erros, conceber um novo processo de conhecimento, um novo diálogo. Mas pode acontecer que este fantasma não se conforme, não entenda nossos motivos, torne-se dependente e passe a nos torturar por um longo período, ou até pelo resto de nossas vidas. Pode acontecer também de nos apaixonarmos (de novo, ou pela primeira vez…), desenvolvendo uma relação arriscada com um ser que não o é mais. Podemos redescobrir a felicidade de estar ao lado deste ser, seja ele quem for, mesmo que seja uma réplica concebida por nossos neurônios convulsivos. Na verdade, muitas vezes, mesmo em vida, deixamos de reconhecer uma pessoa da noite para o dia, isso quando não somos nós mesmos que nos desconhecemos ou nos assustamos com a multiplicidade de formas que nosso rosto e nossa alma tomam.

Como em Solaris, muitas vezes olhamos pelas nossas escotilhas e tudo que vemos é devastação, e nos sentimos sós, desencorajados, desencantados com a marcha humana.

Como em Solaris, podemos estar na iminência de pendurar tiras de papel recortado no ventilador do teto para, na transição da vigília para o sono, acreditar que o ruído é de folhagem ao vento.

Como em Solaris, o planeta e seu oceano vivem. Suas marés podem magoar-se e provocar o retorno de nosso lixo contra nós mesmos. Então, será tarde demais.

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