PLATÃO E O CONHECIMENTO INATO

Por Paulo Urban (Médico-psiquiatra e psicoterapeuta do Encantamento)

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Segundo Platão, conhecer é recordar verdades que já existem em nós – teoria que pode ser atestada sempre que nos deixamos guiar pela voz do inconsciente.

Aprender é descobrir aquilo que você já sabe. Fazer é demonstrar que você o sabe. Ensinar é lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto você.
Richard Bach; Ilusões

Essa máxima sintetiza o inatismo de Platão, doutrina filosófica segundo a qual aprendemos devido a um processo natural de descobertas, capaz de desentranhar conhecimentos racionais e idéias verdadeiras que se encontram, a priori, latentes, guardados em nosso mundo interior.

Platão nasceu em 428-7 a.C., na cidade-estado de Atenas, onde viveu a época de seu apogeu político. Por volta dos 40 anos, o mais importante discípulo de Sócrates fundou sua Academia, dirigindo-a até o fim de seus dias, em 348-7 a.C. Um de seus célebres pupilos foi Aristóteles, que aos 18 anos ingressou na Academia, bebendo da fonte platônica durante as últimas duas décadas de vida de seu mestre. A Academia estenderia seu funcionamento por 900 anos, até hoje a mais longa existência registrada na história das instituições educacionais do Ocidente.

Nascido em berço abastado, numa família que detinha importantes relacionamentos políticos, Platão, após cumprir o serviço militar, pôde aventurar-se pela Magna Grécia. Além de conhecer Euclides em Megara e estudar a matemática de Teodoro em Cirene, estendeu viagem ao Egito, inspirado pelos passos esotéricos de Pitágoras. Ao retornar a Atenas, já tendo escolhido o caminho da ascese espiritual, dedicou-se à poesia, ao teatro e à leitura dos textos clássicos. Aproximou-se dos filósofos e, aos 25 anos, conheceu Sócrates. Acercou-se dele intensamente e com profunda admiração, permitindo que em seu espírito se processasse uma revolução completa ao longo dos três anos seguintes, os quais antecederam a condenação de Sócrates à morte por cicuta.

Platão recebeu notável influência dos grandes pensadores de sua época e soube sintetizar magistralmente suas doutrinas num sistema próprio de compreensão do homem e do universo. De Pitágoras herdou, por exemplo, a vocação para a pedagogia, o amor pela matemática e pela música, assim como o caráter transcendente de sua teoria das idéias e os alicerces órficos de sua filosofia, caso da crença na imortalidade da alma, na metempsicose (teoria que aceita a passagem da alma de um corpo para o outro) e na existência do outro mundo.

De Heráclito aceitou a idéia de que tudo é mudança nesta vida, ao menos neste “mundo sensível” em que vivemos, cercados de ilusões e aparências da verdade, onde nada é permanente. De Parmênides assimilou a crença numa realidade perene e atemporal. Platão situou essa realidade em seu “mundo inteligível”, distinto deste, compreendendo que, para além das realidades ilusórias, a alma (o ser) é una, imutável e permanente.

De Sócrates absorveu o costume de refletir sobre o homem e seus problemas éticos, e apreendeu uma conduta impecável. Dele ainda recebeu a maiêutica (arte de dar à luz a verdade por meio de seguidas perguntas), instrumento valioso para a tese do inatismo. Tal teoria, de que todo conhecimento é reminiscência, assumiu melhores passagens em dois de seus 29 livros: Fédon e Mênon. Neste último diálogo, Sócrates, personagem central do livro, interpela um jovem escravo sem estudos e se põe a fazer-lhe perguntas de crescente complexidade sobre geometria. Por meio de questões precisas, o filósofo extrai respostas claras do rapaz, que consegue espontaneamente resolver um cálculo de área, razoavelmente difícil para alguém ignorante. Ou seja, conforme Sócrates vai dialogando com o escravo no sentido de fazê-lo raciocinar corretamente, as verdades matemáticas vão surgindo na sua mente. Tanto no Fédon quanto no Mênon chega-se à conclusão de que o conhecimento da alma provém de existências anteriores.

Na República (Livro X), Platão procura fundamentar a teoria da reminiscência por meio da alegoria de Er, um pastor da Panfília que, morto em batalha, após dez dias é encontrado com seu corpo intacto entre centenas de cadáveres putrefatos. Levado para casa a fim de que se cumprissem os ritos funerários, já estendido sobre a pira de cremação, no décimo segundo dia após sua morte, Er acorda, levanta-se e põe-se a narrar o que viu no além. O pastor havia estado entre os juízes que separavam as almas boas das ruins, dando-lhes as sentenças conforme haviam vivido seus dias encarnados. Er estivera entre almas de sábios, heróis, antepassados e amigos. Os juízes o haviam escolhido para que, vendo e ouvindo tudo o que ali se passava, pudesse retornar à Terra e contar aos homens o destino que nos reserva o além. Er aprende que as almas renascem indefinidamente para purificar-se de seus erros passados até que não mais precisem reencarnar, quando então passam a residir na eternidade. Compreende ainda que a morte, mero intervalo entre as existências terrenas, é o período em que as almas podem contemplar o conhecimento verdadeiro e ao menos vislumbrar o mundo perfeito das idéias, proposto pela teoria de Platão.

Antes de regressarem à nova encarnação, porém, cabe às almas escolherem o que desejam experimentar entre uma infinidade de sortes ou modelos de vida, que lhes são apresentados por Látesis, uma das três deusas do destino. Há vidas de rei, de guerreiro, de artista, de escravo etc., todas à disposição para que sejam tomadas conforme as necessidades compensatórias do futuro aprendizado.

As almas devem ainda escolher seu próximo sexo e local de nascimento, e se querem retornar feito mineral, vegetal, animal ou ser humano. Em seu caminho de volta, porém, elas atravessam vasta planície desértica, sob calor abrasador, que as força beber das águas de Lethé (esquecimento em grego), o rio da despreocupação. Quanto mais bebem, mais esquecem suas vidas anteriores, até que sejam encaminhadas ao local escolhido para o novo nascimento.

Platão se vale dessa metáfora (que até hoje influencia o kardecismo, o rosacrucionismo e várias outras correntes religiosas) para explicar como o conhecimento pode preexistir de modo latente em nossas almas, fadados que estamos a viver esquecidos de nosso caráter divino e das verdades puras contempladas.

Concordamos, porém, com Bertrand Russel (1872-1970), que diz que o argumento platônico de nada vale se aplicado ao conhecimento empírico. O rapaz escravo não saberia “recordar” – nem mesmo com ajuda da indução de Sócrates – quando se deu, por exemplo, a construção das pirâmides, ou o cerco à Tróia. Contra a teoria da reminiscência, considere-se ainda qualquer descoberta no campo científico, como a disseminação de doenças por meio de micro-organismos atestada pelas experiências de Pasteur. Um completo ignorante dificilmente chegaria a essas conclusões se levado a pensar no problema pelo método de perguntas e respostas.

Somente o conhecimento que se denomina apriorístico, inato – como as intuições lógicas e matemáticas –, é que pode existir dentro de nós sem qualquer prévia experiência. De fato, o conhecimento a priori é o único que Platão admite como verdadeiro, além das revelações místicas às quais nossas almas estão sempre sujeitas.

Independentemente da crença na reencarnação professada pelo filósofo, podemos indagar: de onde teria vindo o saber do escravo se este não tivesse nascido já dotado dos princípios da racionalidade? O inatismo de Platão aqui se atesta: conhecer é recordar a verdade que já trazemos em nós, inerente ao aparato racional e intuitivo de que somos desde o nascimento dotados. Nesse sentido, aprender é mesmo descobrir o que já sabemos.

Aos defensores do inatismo, como vimos, contrapõem-se os empiristas, que afirmam que a verdade e a razão só podem ser adquiridas por meio da experiência. O empirismo entende a razão como uma “folha em branco”, ou uma tábua rasa, sobre a qual vão sendo gravadas as experiências de vida que agregam conteúdo a nosso saber. Freud, por exemplo, enxergava dessa forma nosso mundo inconsciente. A essa visão reducionista da psicanálise contrapôs-se Jung, para quem o inconsciente não é somente dinâmico, mas dotado de autonomia própria, estando ligado à fonte original do saber inconsciente universal. Sendo assim, ele é capaz de nos antecipar verdades que em tempo oportuno se tornarão conscientes, ou de nos levar a passar por experiências significativas, necessárias à nossa evolução pessoal, que Jung chamou de “sincronicidades“. Portanto, no que se refere à sua maneira de compreender o psiquismo, poderíamos dizer que a psicologia analítica é de natureza iminentemente platônica, já que valoriza as percepções intuitivas em detrimento do saber estritamente racional.

Cumpre lembrar que a história das descobertas (mesmo as científicas) está repleta de casos assim. O químico Friedrich Kekulé, por exemplo, adormeceu em frente de sua lareira, sonhou com uma serpente que mordia o próprio rabo e despertou com a exata noção de que o anel de benzeno tinha estrutura espacial hexagonal fechada em si mesma, o que lhe resolveu um problema que o atormentava havia anos. Famosa também é a história do físico Isaac Newton, que teria derivado a equação da gravitação universal num insight que lhe ocorreu ao observar a queda de maçãs maduras no pomar de Woolsthorpe, onde ele costumava passar suas tardes orando e meditando. Mozart também contou com humor que os temas de suas peças eram-lhe antecipados em sonho, sempre mais sublimes do que ele conseguia compor depois!

Gênios iluminados à parte, nossa vida cotidiana acha-se igualmente tomada de exemplos de descobertas espontâneas pessoais. Basta conferir nossa história biográfica, ou mesmo perguntar aos amigos sobre isso. Não resta dúvida: sempre que nos deixamos levar pelas vozes do inconsciente, descobrimos coisas novas, encontramos verdades escondidas, percebemos virtudes e potenciais a serem trabalhados. Admitindo primeiramente nossa virtual ignorância, e buscando intuitivamente por nossos caminhos, estamos exercitando a nobre arte que une a filosofia ao misticismo em favor do autoconhecimento. Importa, sobretudo, abrir nossos canais às lições dos verdadeiros mestres que habitam esferas transcendentes de nossa realidade interior. Conhecermo-nos a nós mesmos é, pois, nossa humilde obrigação, só assim descobriremos os segredos dos deuses e dos homens. Ao menos é o que nos quer ensinar a grande máxima, que repercute a nos lembrar que ninguém é melhor por saber muito, senão que aprendemos descobrindo que sabemos tanto quanto os outros – um quase nada diante dos mistérios realmente imponderáveis.

Referência:
Provas da Reencarnação;
Casos estudados pelo cientista Ian Stevenson;
Casos no Brasil

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Kendy
Kendy
4 dezembro de 2004 2:18 am

Noossssaa, muito bom o texto.
Muito obrigado ao Paulo, autor do texto e a voce, Acid, belo blog que disponibilizou este texto.

Coringa
Coringa
12 março de 2008 2:10 pm

Olim, relax!
Se eu fosse dar um palpite eu diria:
Preste atenção neste vídeo…tem muito mais nele do que se poderia esperar e, no pior das hipóteses, é uma ‘delícia’ vê-lo e ouví-lo…
http://www.youtube.com/watch?v=ol2fN0bZCso

Abs
😉

Olim
Olim
12 março de 2008 12:55 pm

Claro, Acid…

Desculpas pelo trabalho adicional que lhe criei e obrigado pela melhoria.

Saindo da Matrix
Saindo da Matrix
12 março de 2008 12:38 pm

Foi mal, Olim, mas a política que tenho adotado com todos os comentários é que, se tem link, não precisa estar colado aqui. No caso vc poderia colar um trecho que tenha gostado, ou o primeiro parágrafo, só pra dar uma idéia do que é o texto, e aí bota o link. Isso vale, obviamente, pra todos.

Olim
Olim
12 março de 2008 10:27 am

Sorry, pela extensão do texto e por ser meio fora do tema -embora não tanto, se pensarmos bem-.
Tenho ainda(como bem sabem Fiat Lux e Acid) aquele velho dilema respeito do dom de cada um(o que é o dom, como descobri-lo, como pô-lo em prática, como torná-lo expressivo, concreto, neste mundo em que vivemos…), que sempre tenho perseguido e buscado neste caminho de autoconhecimento que vivo.

Tema: Dom e talento

Do leitor Arthur Kumoto: “Como descobrir seu dom natural? Esse dom pessoal pode ser ao mesmo tempo seu dom profissional?”
(por Eugenio Mussak)

http://vidasimples.abril.uol.com.br/edicoes/064/pensando_bem/conteudo_269913.shtml?pagina=0

idiota
idiota
14 outubro de 2007 1:03 am

não é à toa que o cristianismo é chamado de ‘platonismo para o povo’. quanto lixo acumulado! quanto preconceito moral! quanto misticismo barato travestido de “ciência”, de “filosofia”! e ainda vem vocês, com toda ingenuidade mentirosa, se esforçarem para criar um paralelo, um certo alinhamento entre Platão e essa coisa grotesca que é o espiritismo. Não passa de uma consequência dessa fé na “Verdade única e universal”. ‘conhecimento inato’. ‘verdade espontânea’. ‘voz do inconsciente’. ‘evolução pessoal (em outras palavras, o “aprendizado moral” de acordo com um suposto mundo ‘perfeito’, ‘imutável’, o ‘mundo das idéias’). ‘caráter divino das verdades puras comtempladas’.… Read more »

wallace freitas
wallace freitas
21 março de 2005 4:01 pm

esta página tá muito legal, a encontrei por que estava pesquisando um assunto de filosofia para um trabalho da escola e adorei a pesquisa, vendo que a mesma é bem rica em conteúdo.

Anônimo
Anônimo
11 março de 2005 2:51 pm

Vale lembrar que falamos kardecistas porque quando digo que sou espírita acham que sou umbandista (nada contra!!)mas é a única maneira de distinguir.Isso quando não te chamam de espiritualista que seria uma mistura de várias coisas;
Abraço

joana fashion 2005
joana fashion 2005
16 janeiro de 2005 2:48 pm

muito giro estas mensagens pois faz percebe que a vida é bela

Radical Chic
Radical Chic
8 dezembro de 2004 9:16 am

Gente, que bobeira é essa que apareceu em todos os tópicos? Antigamente esses anúncios costumavam “pular” em forma de pop-up na nossa cara…

Saindo da Matrix
Saindo da Matrix
8 dezembro de 2004 9:43 am

os robôs de propaganda “descobriram” meu blog…

Andréa Patrícia
Andréa Patrícia
6 dezembro de 2004 8:48 pm

Muito bom! Interessante isso de “aprender é descobrir o que você já sabe”…Faz tempo que li esse livro. bjs. Muita Luz!!!

Radical Chic
Radical Chic
6 dezembro de 2004 4:53 pm

Oi Acid!

desculpe postar isto fora de lugar (deveria estar no Taoísmo, mas quase ninguém veria…), mas achei muito legal!

Detalhe para o link no final da página, para o Tao Te Ching.

http://arvoredobem.ig.com.br/materias/26/0101-0200/101/101_01.html

Abraços!

Raphael Borges
Raphael Borges
5 dezembro de 2004 5:55 pm

Muito bom esse texto, reencarnação é fato. Só não enxerga que não tem olhos para ver. Be Happy. 😀

Victor
Victor
4 dezembro de 2004 12:31 pm

Interessante… Acho que já sabem, mas é sempre bom lembrar que não existe o termo kardecista 😉 e que espiritismo é espiritismo, termo criado por Krdec, logo, não existe espiritismo não-karedecista, e se existe, não é espiritismo. (Só mesmo pra lembrar)

Andrei P
Andrei P
4 dezembro de 2004 3:15 am

Excelente texto. o grandão – Platão provavelmente é um apelido, significa “costas largas” em grego – escreveu metade de tudo que vale a pena ler em toda a história da humanidade. Vou aproveitar mais os links e pedir uma opinião. Deixando claro que sou reencarnacionista, vejo um certo abuso na identificação desse fenômeno. Vá a qualquer centro espiritualista – notem, não necessariamente kardecista – e verão dez bonapartes e vinte cleópatras. A questão é: Como diferenciar uma reminiscência oriunda de uma reencarnação de um acesso ao inconsciente coletivo (ou qualquer outro nome que se queira dar, não estou me prendendo… Read more »

Anônimo
Anônimo
15 janeiro de 2018 1:14 am

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