PARIS, CIDADE (DE) LUZ

“Ser Parisiense não significa ter nascido em Paris, mas lá ter renascido”.

Sacha Guitry
PARIS, CIDADE (DE) LUZ "Être parisien, ce n'est pas être né à Paris, c'est y renaître". de Sacha Guitry

Nunca quis pertencer a grupos, seitas, nem torci por times de futebol, não me identifico com partidos políticos, nem sou bairrista ou tenho orgulho do meu país. Mas me descobri Parisiense. Sei exatamente quando se deu a conversão; o meu “caminho de Damasco” foi no fim da Lua-de-Mel, em 2011, saindo da Champs-Élysées e entrando na Av. Winston Churchill, defronte aos palácios. De repente, e não mais que de repente, fui reparando no tamanho das calçadas, na limpeza da rua, na estética que regulava as distâncias entre os prédios, o jardim, a rua de pedras batidas… eu já estava na cidade há alguns dias, mas nunca tinha realmente parado pra perceber que, em algum momento do século passado, alguém pensou, projetou e construiu meticulosamente tudo aquilo pra criar uma experiência sensorial de leveza, cidadania, espaço, ordem e beleza. Foi quando me vi diante da Ponte Alexandre III. Naquele momento eu tive a certeza de estar contemplando uma obra-de-arte feita pelas mãos do homem em harmonia com a natureza. Ali, mais do que em qualquer canto, eu vi a alma de Paris: única, elegante, horizontal, ampla, aberta a quem quisesse explorar seus recantos a pé.

Na volta pra casa, passei 2012 inteiro tendo flashbacks de ruas quaisquer de Paris, que apareciam em minha cabeça em momentos banais. “Por que me persegues, Paris?

Em 2013, surgiu a oportunidade de acompanhar minha (então) esposa para ela fazer um Mestrado na França. Estava nervoso. A oportunidade era única, mas não sabíamos em qual região seria na França. Na minha cabeça só conseguia me ver em Paris. Me imaginar em outro canto trazia angústia e dúvidas. Quando surgiu a bolsa para Paris, pedi licença não-remunerada do trabalho e fui com o coração em festa.

Os dois primeiros meses turistando foram ótimos, mas logo a necessidade de se estabelecer se tornou imperiosa, e a barreira da língua, o contato com a burocracia, os serviços e o povo parisiense (entre outras coisas) tornou o primeiro ano e meio uma catástrofe. Não passava um dia sem levar uma patada dos franceses. Comecei a sentir que meu amor pela cidade não era correspondido. Rapidamente o amor (ou melhor, paixão) doente transformou-se em desprezo, e até mesmo raiva. O ódio aos franceses era palpável, e compartilhado por meus colegas estrangeiros que passavam pelos mesmos problemas de adaptação. Mas o ódio cega e, assim como Paulo de Tarso, eu caí do cavalo. E após um frio inverno em que procurei me reinventar e compreender a cidade e o povo ao meu redor eu renasci, Parisiense.

Isso se deu porque busquei compreender, observar, assimilar. E observar não só eles, como principalmente a mim mesmo: o que em mim causava essa reação no outro. E vi que Paris, de tão assediada, tão visitada e tão invadida por culturas diferentes se fecha numa casca de rabugice típica dos stress francês. Os franceses são como os Hobbits: amam a vida tranquila e os pequenos prazeres. Trabalhar é um enfado, um meio para continuar com a vida tranquila e de prazeres nos fins de semana ou à noite, e a agitação da cidade pelos turistas que são barulhentos, andam lento, são impolidos (pra eles) e não respeitam os costumes causam uma irritação compreensível, mas muito exagerada. Um caso interessante se deu na última patada que levei de um parisiense: ele era entregador de correspondência e estava no meu prédio. Falei “bonsoir” (boa noite, que se usa no final da tarde) a ele, e o mesmo não respondeu, balbuciando alguma coisa sem nem olhar na minha cara. Chocado (dar bom dia e boa noite é quase uma obrigação por lá) passei adiante, tentando processar o que ele tinha respondido. Um minuto depois eu consegui decifrar, e a frase que ele balbuciou era “não são 16 horas ainda”. Minha vontade era voltar lá e xingá-lo. Fosse um outro francês começaria uma daquelas discussões intermináveis que se vê nos metrôs pelos motivos mais tolos. Mas depois eu pensei na genialidade, no tempo livre e na filadaputice do cara de responder isso de bate-pronto, quando ele poderia simplesmente me ignorar calado, ou dar seu bonjour automático e seguir adiante com seu trabalho enfadonho. Mas eles têm um refinamento da crítica (ou da perversidade, se quiser ver por esse lado) que denota uma grande capacidade intelectual, aliado a uma criancice que nunca vi em outras culturas (a criancice do japonês reside na inocência, enquanto a do francês está na peraltice). E, como em toda criança perversa ou peralta, o prazer do parisiense está em ver o outro (especialmente os estrangeiros) irritado. Uma vez que você negue este prazer e retribua com gentileza ou indiferença você desarma um parisiense (experiência aprendida após muitos confrontos inúteis, inclusive com uma criança). Uma vez que você conquiste a confiança deles, você verá o quão bonitos, sensíveis e solícitos eles podem ser.

Minha relação com a cidade passou a ser de profunda comunhão. Quando estava triste por algum motivo, bastava sair pelas ruas, à qualquer hora, e voltava renovado, reenergizado. Acolhido. Mesmo num ambiente completamente impessoal, estéril e individualista que é a sociedade parisiense, a cidade fervilhava de pequenos detalhes íntimos, contribuições pessoais de artistas anônimos; nas calçadas via os cidadãos com suas roupas em tons escuros – sem nunca usar mais do que três cores em sua vestimenta – mas com um detalhe de cabelo, camiseta ou maquiagem que emanava para o mundo sua expressão única, individual, discreta e silenciosa. Por 5 vezes na rua fui parado ou cumprimentado por franceses que curtiam minhas camisetas nerd. A mesma sociedade que preserva sua cidade como um museu à céu aberto também aprecia as intervenções artísticas nos muros e placas de bairros mais boêmios. Foi justamente onde calhei de morar.

Não tem como ficar triste vendo coisas como essas

A área do bairro 11 é a mais festiva, mais jovem, alegre e onde os novos movimentos artísticos florescem. É uma Paris diferente, em nada glamourosa, mas muito viva e atual. E foi justamente onde ocorreram os atentados de 14 de novembro.

Os terroristas procuraram atacar justamente o cidadão francês nos seus prazeres: bares (bistrôs), discotecas, futebol. Acharam que podiam intimidar o mundo ocidental atacando os prazeres ocidentais, vistos como “impuros” por uma interpretação doentia do Islã (beber alcool, por exemplo, não é permitido aos islâmicos, mas nem por isso Maomé saiu matando pessoas de outras civilizações que bebem). Mais ou menos como sua religião proibir a homossexualidade e, numa interpretação doentia, você querer impedir o casamento de quem não comunga de sua fé. É, pessoas assim existem, acredite se quiser. No caso dos franceses, não adiantou muito a ameaça, porque no fim de semana seguinte eles criaram o movimento #tousaubistrot (todos aos bares), para mostrar que não têm medo (eles têm, mas são teimosos por natureza).

Quanto a mim, senti o golpe como se tivessem atacado o quintal da minha casa. Até porque era perto de onde morava, mesmo. Um golpe contra os valores que eu comungo, contra a cidade a que pertenço, mesmo distante. Muitas coisas passam pela cabeça, mas não tenho muito o que falar. Ainda estou em um estado de confusão mental, de readaptação.

É isso, pra quem estava curioso.

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Súlia
Súlia
23 dezembro de 2015 1:13 pm

Lendo seu texto consegui, finalmente, entender o que me acometeu em Paris… renasci parisiense. Muito bom saber que outros tiveram o mesmo olhar, ainda que, ainda, eu não tenha morado lá. Parabéns!

César Aragão
César Aragão
25 novembro de 2015 7:27 am

Um dos melhores textos do blog ,eu comungo completamente da sua opinião.Também tenho essa relação com Paris.

Açulcar
Açulcar
25 novembro de 2015 5:38 pm

Aprendendo a plantar flores em desertos.

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25 novembro de 2015 12:20 pm

Oi Acid, estou aqui na Suiça agora e só posso dizer que te entendo completamente. Eu já passei da fase do ódio aos suíços (direcionado a uma região específica, no Ticino) e de repente tive essa visão de que não eram eles o problema, mas algo em mim. Agora estou na fase amando, mas mudei de região e confesso que tenho “ransa” (melhor palavra pra descrever) de lá. Sua descrição da rabugentisse francesa também se aplica aqui onde estou, mas ainda não havia despertado essa sabedoria budica de responder as grosserias com gentilezas. Vou começar a fazer isso agora. Quanto… Read more »

um neutrino aqui
um neutrino aqui
26 novembro de 2015 9:25 pm

Bom, depois de cair duas vezes na malha fina, vai um comentariozinho aqui. Gostei muito do post. 🙂 Mas, como não poderia deixar de ser, algumas breves observações: “Um socialismo não-demagógico” Este non ecziste. “que utiliza o capitalismo como motor” Os socialismos que eczistem sempre tiveram tal motor, e tem dado no que tem dado. “a laicidade do Estado” Também non ecziste tal como se imagina. Estado “laico” é nada mais nada menos que um Estado sectarista, e, portanto, essencialmente antirreligioso, que serve como meio efetivo para a implementação de um Estado pseudomessiânico globalizado tirânico, também por meio do combate… Read more »

Roberto Vasconcelos
Roberto Vasconcelos
27 novembro de 2015 11:07 am

Como assim, “então” esposa? Não me diga que deu ruim, Acid. =(

Nísia
Nísia
2 dezembro de 2015 3:36 pm

Gostei muito de ler, Acid, obrigada. Lamento muito por Paris, pelos parisienses, e também pelos infelizes – tão infelizes – terroristas. Eles não conhecem o amor.

Luan
Luan
27 novembro de 2015 9:50 pm

É um texto maravilhoso.

Renata
Renata
25 janeiro de 2016 4:40 am

Nossa que texto! !
Eu nunca fui em Paris, mas por incrível que pareça é onde quero viver um dia. Não sei explicar, mas sempre foi o desejo (o chamado ). Com certeza vou me lembrar desse texto…
Obrigada! !

Acid
Acid
21 janeiro de 2017 8:56 pm

É Skywalker… nesse tempo todo o blog nunca deixou de ser pessoal, de certa forma, e os temas refletem meus momentos e um pouco de minha alma. And muito angustiado não só pelas coisas pessoais como pelo momento no qual estamos vivendo tanto a nível de Brasil como de mundo. Brasil nem precisamos falar, ne? E no mundo a incógnita Trump, China botando as mangas de fora, Crise dos refugiados na Europa e a ameaça terrorista cada vez mais difícil de controlar.

Espero que venham tempos melhores, mas não apostaria 1 centavo nisso. Abraços pra vc, Skywalker!

Skywalker
Skywalker
21 janeiro de 2017 9:41 am

Olá Acid, Revisitando seu blog, passeando pelos artigos “Tempos Sombrios”, este e outros mais recentes (Blade Runner, não assisti ainda, pretendo assistir em breve), bate uma sensação de angústia, de impotência, associada ainda ao meu momento pessoal atual, donde eu concluo: – Nossa época não tá nada fácil! O equivalente mais próximo que visualizo historicamente é o período da decadência da Roma Antiga – transição de uma Era para outra, como hoje; – A confusão de valores, o “certo e errado” ninguém sabe ao certo, o relativismo extremo, as antigas receitas sobre tudo se esfarelam ante a realidade… tudo isso… Read more »

Alerion
Alerion
23 dezembro de 2015 10:48 pm

Belo post. Ainda quero conhecer Paris. Para todo artista, ela e a Itália são consideradas “Luzes” nesta terra.
Fiquei muito triste por ler “então” esposa. Lembro da época do seu casamento… mas a vida é assim mesmo. Sucesso.

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