A fábula do Pastoreio do Boi / Touro consiste em 10 quadros originalmente de autoria do mestre Zen Kakuan Shien (ou Kuoan Shiyuan) (960-1279), da dinastia Sung. Ele usou este artifício para ilustrar as etapas da doutrina Zen. Este monge também escreveu os textos e poemas que se encontram abaixo de cada quadro. Existem diversas versões da sequência de pinturas, mas a usada abaixo foi pintada por Tensho Shubun (1414-1463). Como eu percebi a semelhança com o roteiro de Matrix Revolutions, coloquei uma cena do filme ao lado de cada quadro (vocês perceberão as semelhanças).
Essa fábula simboliza a busca e o controle do homem sobre seu ego / duplo / desejos. Ali está o homem, dividido em personalidade e espírito, esquecido da pureza original, lutando contra tudo, incapaz de distinguir entre a falsidade e a verdade. Mas, ao prestar atenção àquilo que o rodeia, percebe, através dos sentidos, a verdadeira natureza das coisas, eliminando toda noção de ganho e perda, de claro e escuro. Enfim, a dualidade desaparece quando se recupera a natureza original.
PROCURANDO O TOURO
Na primeira imagem vemos um jovem à procura de capturar um boi selvagem na floresta. Mas o jovem encontra-se perdido, pois ele é um boiadeiro sem boi, ou seja, é alguém que busca algo que não sabe se vai encontrar, ou se estará preparado para a tarefa de pegar o boi. Ele se sente inseguro, vazio, e vaga a esmo pela floresta.
O touro, na realidade, nunca foi perdido. Então, por que procurá-lo? Tendo dado as costas à sua verdadeira natureza, o homem não pode vê-lo. Por causa de suas ilusões, ele perdeu o touro de vista. Repentinamente, se acha confrontado por um labirinto de encruzilhadas. Desejos de ganhos e medos de perdas sobem como chamas; idéias de certo e errado aparecem como punhais.
“Desolado através da floresta, com medo, nas selvas, ele procura o touro e não encontra. Para lá e para cá, grandes rios sem nome; nas profundezas dos ermos das montanhas ele segue muitas veredas. Cansado de coração e corpo, continua sua busca por aquilo que não pode ainda encontrar. De tardinha, ouve as cigarras cantando nas árvores.”
ENCONTRANDO A PISTA
Depois de muito andar ele encontra marcas no chão que indicam o caminho para o boi. O jovem então faz silêncio, aguça os sentidos e se harmoniza com o ambiente, para poder ouvir qualquer ruído que leve ao boi.
Através dos sutras e ensinamentos, ele vislumbra as pegadas do touro. Foi informado que, assim como diferentes vasos (de ouro) são todos basicamente do mesmo ouro, assim também cada coisa é uma manifestação do próprio ser. Mas ainda é incapaz de distinguir o bem do mal, a verdade da falsidade. Não entrou ainda pelo portão, mas vê, numa tentativa, a pista do touro.
“Inumeráveis pegadas ele viu na floresta e nas margens das águas. Não é aquilo que ele vê adiante, mato amassado? Mesmo nas mais profundas grotas ou nos mais altos picos, não pode ser escondido o nariz do touro que alcança para os céus nas alturas.”
PRIMEIRO VISLUMBRE DO TOURO
E então ele o vê ao longe, de relance, por entre as árvores. Quando corre até o boi, o perde de vista na densa floresta; Ele continua procurando, o vê novamente muito rapidamente, e o perde quanto mais se embrenha na floresta atrás dele. Até que ele consegue sair da floresta para o campo aberto e vê que o boi não se moveu do lugar onde estava pastando tranquilamente. O jovem é que, na ânsia de pegar o boi, acabou correndo sem rumo pela floresta.
Se ele somente escutar os sons de cada pegada, virá à realização e, naquele instante, verá a própria origem. Os seis sentidos não são diferentes desta verdadeira origem. Em todas as atividades a origem está manifestadamente presente. E análoga ao sal na água, à liga na tinta. Quando a visão interna está corretamente focada, realiza-se, que o que é visto é idêntico á origem.
“Canta o rouxinol num galho o sol brilha nos salgueiros que ondulam; ali está o touro, onde poderia esconder-se? A esplêndida cabeça, os majestosos chifres, que artista pode retratá-lo?”
SEGURANDO O TOURO
Então ele joga uma corda para amarrar o boi, que obviamente não quer saber de ser preso. O jovem tenta controlá-lo, o boi escapa, ele volta a pegá-lo, e pra isso ele tem de se mostrar cada vez mais duro para com o boi, tendo de usar o chicote.
Hoje ele encontrou o touro que estava vadiando pelos campos selvagens. E verdadeiramente o pegou. Por tanto tempo se comprazeu nestes arredores que quebrar seus velhos hábitos não é fácil. Continua querendo o capim cheiroso, está ainda indócil e teimoso. Para domesticá-lo, completamente, o homem deve usar o chicote.
“Ele deve segurar firmemente a corda e não soltar agora ele corre para as terras altas agora se demora nas ravinas enevoadas.”
DOMESTICANDO O TOURO
Ele consegue domá-lo. Obviamente o boi está aborrecido, ambos estão cansados da luta, e o boi deixa-se guiar pelo nariz, bufando, mas seguindo cada passo do rapaz, que não relaxa a corda nem por um minuto, mesmo estando extremamente cansado.
Com o nascimento de um pensamento, outro e outro mais nascem também. A iluminação traz à realização, pois estes pensamentos são irreais, já que não surgem de nossa verdadeira natureza. Somente porque a ilusão permanece, são os pensamentos tidos como reais. Este estado de ilusão não se origina no mundo objetivo, mas em nossas próprias mentes.
“Ele deve segurar o touro com força pela corda do nariz e não permitir que vague sem cuidado. Ele se torna limpo e claro. Sem cabrestos, segue o dono por sua própria vontade.”
INDO PARA CASA MONTADO NO TOURO
O boi já está dócil. O jovem sente uma alegria indescritível. Ele se sente completo: Boiadeiro e boi reunidos. Ele domou o animal, ele venceu! Recuperou o que nunca tinha perdido, que é sua liberdade, e conquistou o que era seu por direito: Sua força, seu boi.
A luta acabou. “Ganho e perda” não mais afetam. Ele murmura canções rústicas dos montanheses e toca as cantigas simples da meninada da aldeia. Montado no lombo do touro, olha serenamente as nuvens que passam. Sua cabeça não se vira (na direção das tentações). Tente como quiser aborrecê-lo, e ele permanece imperturbável.
“Usando um grande chapéu de palha e capa, montado e tão livre quanto o ar, ele alegremente vem para a casa através das neblinas do entardecer. Aonde quer que vá, cria a brisa fresca, enquanto que no coração prevalece a profunda tranqüilidade. O touro não requer nem um talo de capim.”
O TOURO ESQUECIDO, O EU SOZINHO
São tempos felizes que se seguem, mas, um belo dia o boiadeiro acorda e seu boi não está mais lá no pasto. Sua paz permanece inalterada, sua felicidade também, e o jovem reconhece que não precisava do boi para permanecer naquele estado. Ele era o que era, com boi ou sem boi. A corda e o chicote estavam jogados há muito num canto da casa. Não havia motivo para segurá-lo, e nem há agora, muito menos, pra recuperá-lo. O jovem vê que, assim como o boi era uma muleta, uma referência, um objetivo, ele mesmo o é.
No dharma não há duas coisas. O touro e sua natureza original. Isso ele reconhece agora. A armadilha não é mais necessária quando o coelho foi capturado, a rede se torna inútil quando o peixe foi apanhado. Como o ouro separado da escória, como a Lua que apareceu entre as nuvens, um raio de luz brilha eternamente.
“Somente com o touro ele pode chegar a casa mas agora o touro desapareceu e só e sereno senta o homem. O sol vermelho passa alto no céu enquanto ele sonha placidamente. Lá embaixo do telhado de sapé jazem, sem uso, chicote e corda.”
O TOURO E O EU SÃO ESQUECIDOS
Nesse ponto, já não há mais boi, boiadeiro, corda ou chicote; a dualidade e as ferramentas evolutivas foram embora; a mente está completamente clara e tudo o que resta é o NADA.
Sumiram todos os sentimentos ilusórios e desaparecidas estão também as idéias de santidade. Ele não se demora (no estado de “eu sou um Buda”) e passa rápido (pelo estado de “e agora me livrei do orgulhoso sentimento de ser”) para não Buda. Mesmo os mil olhos (dos quinhentos Budas e patriarcas) não podem discernir nele qualquer qualidade específica. Se centenas de pássaros jogassem flores por sua casa, ele só se sentiria envergonhado.
“Chicote, corda, touro e homem pertencem igualmente ao vazio. Tão vasto e infinito é o céu azul que não há conceitos que o alcancem. Sobre o fogo flamejante o floco de neve se funde. Quando este estado é realizado chega finalmente à compreensão do espírito dos antigos patriarcas.”
VOLTANDO A ORIGEM
Mas mesmo o NADA é uma ilusão, e por isso deve cessar. Então, o jovem permanece com a mente inamovível, vendo que as águas são azuis e as montanhas verdes, mas sem se identificar com elas; (“Olha, os riachos correm… pra onde, ninguém sabe. Olha as flores vivamente vermelhas… mas, para quem são elas?”).
Desde o começo, nunca houve nem um grão de poeira (para bloquear a pureza intrínseca). Ele observa o crescer e decrescer das coisas do mundo, enquanto permanece sem esforço, num estado de tranqüilidade inalterável. Isto (o crescer e decrescer) não é ilusório nem fantasmagórico (mas a manifestação da origem). Por que, então, é preciso lutar por algum objetivo? As águas são azuis e as montanhas verdes. A sós, consigo mesmo, ele observa o mudar sem fim das coisas.
“Ele voltou à origem, retornou à fonte primeira. mas seus passos foram em vão. E como se agora estivesse surdo e cego. Sentado em sua palhoça, não procura coisas de fora; fluem de si mesmas as águas correntes, flores vermelhas desabrocham naturalmente vermelhas.”
ENTRANDO NA PRAÇA DO MERCADO
Na décima e última imagem o jovem regressa ao mercado (ao mundo) com um largo sorriso, livre de tudo, pondo todo o seu ser em tudo o que faz, porque não pretende com isso obter nenhum benefício.
O portão de sua palhoça está fechado. Nem o mais sábio pode encontrá-lo. O seu panorama mental finalmente desapareceu. Ele vai no seu próprio caminho, não fazendo tentativa alguma de seguir os passos dos antigos mestres. Carregando uma garrafa, passeia pelo mercado; apoiado num bordão volta para casa. Conduz os donos de botequins e peixarias ao caminho de Buda.
“De peito nu e descalço, dá entrada no mercado enlameado e coberto de poeira; como sorri amplamente sem recorrer a poderes especiais faz com que as árvores ressequidas floresçam novamente.”
Fonte: Revista Planeta especial Zen-budismo. Nº 188-A. Janeiro de 1984.
“Os dez quadros do pastoreio do touro dizem respeito ao nosso desenvolvimento interior e possui também um significado mais amplo, pois neles se manifesta a busca da própria humanidade. Podemos também associar os quadros ao mito do filho pródigo do cristianismo. O filho pródigo “tendo dado as costas a sua verdadeira natureza”, se perde tal como o pastoreio do touro e perambula pelo mundo buscando a felicidade para, enfim, voltar e encontrá-la na casa do pai.
Patrul Rinpoche; Words of my perfect teacher
Os quadros representam nossa própria busca interior, pois todos temos que enfrentar nossos inimigos, que são as recordações, os hábitos e as repetições. É preciso que estejamos atentos a esses círculos viciosos e cansativos cujo peso impede que encontremos a paz e o repouso.
“Todo momento, esteja consciente e vigilante para não se apegar às suas percepções do universo – e os seres dentro dele – como reais e sólidos. Treine a si mesmo para encarar tudo como um jogo de aparições irreais.”
Não fiquem fascinados pelo final da história. Não dá pra abandonar de vez o homem e o boi enquanto um ainda está montado e dependente do outro. O que quero passar aqui é que VOCÊ NÃO É O BOI. O jovem ficou tão dependente de uma razão para justificar sua existência (boiadeiro) que precisou desesperadamente de um boi, uma força motriz que o impulsionasse, o completasse. Você não é seu corpo, sua personalidade, seus desejos, suas emoções. E ao mesmo tempo É, enquanto você se identificar com o boi, enquanto você precisar dele (e todos nós que estamos aqui ainda precisamos do nosso corpo, de nossos sentidos, motivações e emoções). E, depois de sentir que não é o boi, vai ter de aprender a sentir que também não é o boiadeiro. Mas, uma coisa de cada vez.
Então, vamos seguir os passos da parábola:
1– Precisamos primeiro trazer o boi de volta para o dono, ou seja, mostrar que você não é guiado por seus desejos, seus sentidos, que pode resistir a um pedaço de pizza ou a um rostinho bonito, se essa NÃO for sua meta. Essa auto-superação foi bastante assimilada pelos orientais, que não deixam o sono, a impaciência, o medo ou mesmo a razão interferirem com suas metas. E por isso (porque não há o impossível pra quem quer) é que o Japão é o que é.
2– Não é o boi que está perdido, e sim o jovem que se perdeu quando foi na floresta buscar um boi que nem sabia que se existia. E, quando o encontrou, se completou (se perdeu pra se achar).
3– Não vá com muita sede ao pote quando começar a ver o boi, ou vai acabar se perdendo no primeiro caminho que você ver. Medite e concentre-se em primeiro saber onde exatamente o boi está e ache o melhor caminho pra você ir até ele.
4– A luta com o boi é o confronto com sua dualidade. Neo contra Smith. O boi é muito mais forte, mas você tem a corda e o chicote para conseguir seus objetivos, para domar suas inclinações contrárias, através das limitações e da dor.
5– Uma vez que o boi esteja perfeitamente domado, você não vai precisar se preocupar com ele. Aí então poderá relaxar e esvaziar sua mente, e se preparar para entrar no estágio Búdico, que é a iluminação, a fusão com o seu oposto (LUZ, como na união de Neo e Smith). E, logo após, um retorno ao mundo (Matrix), que já não é o mesmo, embora seja o mesmo, mas desta vez com o boiadeiro (Neo) integrado a ele.
Há um ditado que diz que “não se pode botar os carros na frente dos bois”. Isso é adaptado do conceito Budista do boi ser rústico, ignorante, mas forte, útil ao trabalho do boiadeiro, uma força motriz, se bem direcionada. É entendendo melhor o símbolo do boi que entendemos ainda melhor este ensinamento de Buda:
“Nós somos o que pensamos. Tudo o que somos emerge com os nossos pensamentos. Com os pensamentos fazemos o mundo. Se falares ou agires com um espírito impuro, os problemas seguir-te-ão, como a roda segue o boi que puxa a carroça. Se falares ou agires com um espírito puro, a felicidade seguir-te-á como a tua sombra, constantemente.”
Buda
Referência:
Fábula do boi nas mais diversas versões e desenhos;
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O Cristo não pediu muita coisa, não exigiu que as pessoas escalassem o Everest ou fizessem grandes sacrifícios. Ele só pediu que nos amássemos uns aos outros.
— Chico Xavier
[…] anos atrás e nossa base de conhecimentos, foi construída com base em jornadas heróicas, desde a Fábula do Boi, passando pela Jornada do Herói e a Jornada da Heroína. Nossa primeira proposta de jornada […]
Adoro este conto zen mas o Osho adiciona mais um quadro final: o rapaz anda feliz, com uma garrafa de vinho, celebrando a sua vida a partir daí. Se embriagando com a vida! A garrafa de vinho é um símbolo, e não um ato de embriaguez ao pé da letra!
Atuaizado
Interessante! Importante!
Onde será q to errando?? sou justa e honesta,bom coração e tal. Pq a felicidade não vem naturalmente? como diz o buda?
muito boa a parábola já tinha visto algo parecido no blog francoatirador…
sempre é bom relembrar
maravilha de texto, obrigado!
flaviana
se vc desejar a felicidade ela não virá. A felicidade é um subproduto da verdade; conheça a verdade que a felicidade vem.
Estou na fase “3” rs rs rs… perdido…
Muito profunda a fábula…
Abraço
O fundo é bom, mas é um conto especista…
Hoje em dia nós podemos usar contos melhores.