A MOEDA DE OURO

Por Malba Tahan

Califa

Quem andava pela porção nobre de Bagdá durante o reinado do benevolente Califa Haroun Al-Raschid maravilhava-se com mansões gloriosas como o nascer de um Sol, que se sucediam em meio a jardins magníficos que eram verdadeiras jóias encrustadas na Capital dos Crentes: cada uma delas uma obra de arte única.

Eis que um dos palacetes sobressaía-se, não pela beleza de sua compleição (embora frases do Profeta adornassem em baixo relevo sua fronte, e a beleza de seus minaretes fosse um espetáculo em si), mas pelo abandono em que se encontrava. Em seus vastos jardins árvores quase secas pareciam lutar para manter o que ainda nelas havia de verde, e mato crescia sem que nada além do inclemente sol da cidade o censurasse; as paredes estavam escurecidas pela sujeira como se há anos nenhuma alma se preocupasse com isso.

Quem perguntasse ouviria com desdém que ali morava um velho de nome Hassan Ibn Ahmad, cujas pernas lhe falhavam e não mais lhe permitiam cuidar de seu jardim. O viajante curioso descobriria também que o velho não tinha filhos que zelassem pelo pai idoso, ou esposas; vivia sozinho e não havia em toda Bagdá quem aceitasse trabalhar em sua casa.

Ocorria que durante toda sua vida Hassan Ibn Ahmad exercera o ofício de embaixador para o próprio Califa, e para o pai do Califa antes dele, vivendo em meio a infiéis e bárbaros, presenciando os atos mais baixos contra a cultura e a fé do glorioso povo árabe. E não havia em todo o Mercado de Bagdá quem não afirmasse com pesar que tantos anos entre inimigos do Profeta haviam corroído a alma do erudito Hassan, afastando-o da doutrina de Alá. Assim o velho vivia sozinho, afastado dos olhos de todos.

Certo dia Haroun Al-Raschid anunciou para espanto de todos que faria uma visita a Hassan Ibn Ahmad, antigo funcionário do governo. O vizir Taruk Ibn Nassim opôs-se, relatando ao glorioso Califa o que se dizia na cidade sobre o velho, ao que o Chefe dos Crentes ouviu em silêncio, limitando-se a sorrir no final e a ordenar que os preparativos fossem feitos e a tranquilizar o vizir com palavras amenas.

A passagem do Descendente do Profeta pelas ruas da cidade era sempre um espetáculo. À opulenta comitiva seguiam centenas de fiéis que glorificavam Alá e o Califa que Ele havia lhes enviado. Sentado ao lado do Califa estava o vizir Taruk Ibn Nassim, que insistentemente repetia:

– Ó glorioso Califa, eu afirmo pela escassa sabedoria que Alá me concede: pouco tens a ganhar visitando uma alma suja como o velho Hassan Ibn Ahmad, que os céus tenham piedade de sua alma! Os anos de iniquidade em meio à barbárie desmancharam a virtude do embaixador, como o povo bem sabe! Tal pessoa não faz jus à presença iluminada do Chefe dos Crentes em sua casa, ó glorioso Haroun Al-Raschid!

O Califa ouvia desatento as palavras do invejoso vizir, enquanto acenava para o povo que se aglomerava em volta; colocou, então, a mão dentro de uma bolsa ricamente ornada como se procurasse algo. Tirou de lá uma moeda de ouro e observou-a por alguns momentos, em silêncio; ela então caiu de sua mão, indo até o chão enlameado por onde a comitiva caminhava. Com uma aparência contrariada, ordenou que todos parassem.

– Taruk, meu fiel vizir – disse – acaba de cair de minhas mãos uma moeda de cobre que me é muito cara, pois eu iria entregá-la a um mendigo que vi há pouco. Faça-me um favor, desça e a recupere para mim.
– Imediatamente, ó Luz na Terra, mas me permita discordar e observar que relembro com toda a certeza ter visto uma moeda de ouro em vossas mãos! – respondeu o vizir, recuperando a moeda em meio à lama e limpando-a em suas ricas vestes. – Vês, senhor? É uma moeda de ouro, como nova!
O rosto do Califa iluminou-se.
– Que Alá seja louvado! Como essa moeda, meu bom Taruk, é o ilustre Hassan Ibn Ahmad. Nem toda a lama do inferno pode corromper o que é puro como o ouro, e mais pura que o ouro é a alma do homem honrado que adora o Altíssimo!

O vizir abaixou a cabeça, envergonhado, e a comitiva seguiu em direção a um Hassan Ibn Ahmad que aguardava na soleira da porta, sorridente, que olhava o Califa Haroun Al-Raschid com os olhos transbordando uma ternura que existe apenas quando se revê um velho e querido amigo.

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Thiago Alcalde
Thiago Alcalde
23 dezembro de 2010 5:34 pm

Malba Taham, meu primeiro livro, O Homem que Calculava, isso há mais de quinze anos… agora tenho guardado comigo além de ter lido algumas centenas das Mil Histórias sem Fim. Realmente, textos de pura sabedoria que há um charme inegável em sua narrativa.
Lembro-me da minha infância e de como esse livro mexeu comigo.

Aliny
Aliny
27 dezembro de 2010 11:14 am

Como pode, olha o tamanho da nossa ignorância, nós mesmos, os próprios que contamos a história, que gostamos da história, que concordamos com ela, acreditamos que estamos errados por sermos contraditórios, porém continuamos a viver na contradição…

Será que a lama é tão boa assim que não valha a pena limpá-la para permitir reluzir o ouro??? Ficamos presos na gosma externa que nos rodeia, fazemo-la aumentar, nos misturamos a ela, esquecemos quem somos, valorizamos o mundano, só enxergamos a lama do próximo… será que sempre foi assim mesmo?

Ike, do âmago do vulcão,
Ike, do âmago do vulcão,
27 dezembro de 2010 11:49 am

“TODOS somos preconceituosos, não há como negar.” Com certeza Dohko… Bem vindo à humanidade! Só não diz isso na frente do pessoal do Movimento Gay. A ‘retórica antipreconceituosa’ dessa turma não suporta “carapuças generalizadas”. ;¬) E essas estórias ‘de cunho moral’ são feitas sob medida pra mim, que não valho nada. Os anjos já estão regogizados na perfeição divina, não precisam disso, pois sabem muito bem o significado do termo “moral”. E graças ao legado cristão, os estigmas produzidos pelo preconceito social foram, senão sanados, pelo menos diminuídos grandemente ao longo dos tempos. Aonde um preso, uma prostituta, um alcólatra,… Read more »

Nid
Nid
24 dezembro de 2010 9:56 am

Ele morreu em Recife, faz um tempo.

F.N.
F.N.
24 dezembro de 2010 9:32 am

Todos somos uma superposição de animalidades racionais. O que FAZEMOS(nós), é evitar as animalidades aparentes para não termos que olhar para nossa própria sombra e sofrer mergulhado no entenebrecimento da vida através da negridão imaculada de nossas próprias imagens, da sombra de nosso ser.

Anônimo
Anônimo
23 dezembro de 2010 12:38 am

Vale lembrar sobre quem foi Malba Tahan: Malba Tahan: Júlio César de Mello e Souza nasceu no dia 6 de maio de 1895 na cidade de Queluz, estado de S. Paulo, Brasil e celebrizou-se sob o pseudônimo de Malba Tahan. Foi um caso raro de um professor de matemática, quase tão famoso como um jogador de futebol. Na verdade, foi um professor criativo e ousado que estava muito além do ensino exclusivamente expositivo do qual foi um feroz crítico. “O professor de Matemática em geral é um sádico”, acusava. “Ele sente prazer em complicar tudo.” Além disso, criou uma didática… Read more »

Sentinela
Sentinela
23 dezembro de 2010 5:15 pm

Lia um texto sobre isto? Era sobre o mito de narciso? E um conceito tirado dele chamado alma externa. Os índios americanos quando alguém ia tirar uma foto deles eles temiam que levasse consigo sua alma. A discussão do Artigo era qual alma era essa que se perdia ao tirar a foto. O mito de narciso revela o processo de individuação o de olhar para se mesmo e se achar separado do mundo. A alma externa seria o reflexo que transmitimos ao mundo. A alma externa seria quando você enxergaria no espelho através do seu reflexo não a sua imagem… Read more »

Flávia
Flávia
23 dezembro de 2010 12:58 am

Gostei muito do seu blog! Estou lendo aos poucos. Tenho grande interesse pelos temas e gostei da maneira como você escreve!

Yoda
Yoda
23 dezembro de 2010 6:28 am

HARIH OM

hans
hans
23 dezembro de 2010 8:01 am

Malba Tahan, era um gênio. “O homem que calculava” deveria ser leitura “obrigatória” nas escolas.

Dohko de Libra
Dohko de Libra
23 dezembro de 2010 11:18 pm

Infelizmente histórias de cunho moral são feitas para anjos (se existissem), não para humanos. O texto fala que nem a lama nem nada pode corromper o que é puro. Mas na prática a lama acaba substituindo o ouro. Você contrataria para trabalhar na sua casa uma empregada que já tivesse sido presa (você não sabe o crime)? Ou contrataria para a sua empresa alguém que já tivesse sido internado num hospital psiquiátrico? Ou se casaria com uma ex-prostituta? TODOS somos preconceituosos, não há como negar.

Dohko de Libra
Dohko de Libra
23 dezembro de 2010 11:34 pm

Mas o lado bom disso (se há) é que em boa parte das vezes não há ouro nenhum. É como Dráusio Varella fala em Carandirú “Aqui só tem inocente!”.

Malba Tahan
Malba Tahan
27 dezembro de 2010 9:28 pm

Um vídeo inspirado em números, geometria e natureza:

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